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Como erros, boatos, mentiras e pegadinhas na Wikipédia afetam o mundo real Escrito por Cláudio Goldberg Rabin 7 July 2016 // 02:54 PM CET https://motherboard.vice.com/pt_br/read/como-mentiras-na-wikipdia-afetam-o-mundo-real/?trk_source=homepage-lede# https://motherboard.vice.com/pt_br/read/como-mentiras-na-wikipdia-afetam-o-mundo-real/?trk_source=homepage-lede# https://motherboard.vice.com/pt_br/read/como-mentiras-na-wikipdia-afetam-o-mundo-real/?trk_source=homepage-lede# https://motherboard.vice.com/pt_br/read/como-mentiras-na-wikipdia-afetam-o-mundo-real/?trk_source=homepage-lede# https://motherboard.vice.com/pt_br/read/como-mentiras-na-wikipdia-afetam-o-mundo-real/?trk_source=homepage-lede#
Às 15 horas e 44 minutos de 14 de junho de 2015, na calada do anonimato da Wikipédia, alguém mudou o local de nascimento da cantora Marina Lima. Substituiu “Rio de Janeiro” por “Campo Maior”, no Piauí. Foi o início de uma batalha entre a artista e a enciclópedia, com ares de Sessão da Tarde misturado com Franz Kafka.
“Percebi que tinha alguma coisa estranha quando começaram a sair várias matérias com a informação errada, inclusive na coluna do Nelson Motta”, diz Leandro Nomura, assessor de imprensa da artista há cinco anos.
A pequena alteração ganhou dimensão nacional dois meses depois no Jornal da Globo. O âncora William Waack chamou a coluna de Motta http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/0... assim: “Bonita como o Rio de Janeiro, Marina Lima é talvez a única carioca nascida no Piauí”, naquele tom amistoso de apresentador de telejornal. Em seguida, Motta repete o erro em sua homenagem aos 60 anos da cantora.
Marina Lima revoltada por não conseguir que a enciclopédia botasse seu local de nascimento correto. Crédito: Reprodução/ Twitter
“Eu mesmo tentei corrigir as alterações, só que cada vez que eu fazia uma mudança, eles a revertiam dizendo que tinham referências de que ela havia nascido no Piauí”, lembra Nomura.
"Sabia que os pais de Marina eram do Piaui, mas fui traído pela Wikipédia", nos disse, por mensagem, Nelson Motta.
Na mais completa enciclopédia multilíngue que já existiu, uma mentirinha precisa ser digitada uma vez para ser tomada como verdade por incautos e preguiçosos. Os casos de vandalismo digital são tantos que, ao longo dos anos, a Wikipédia foi obrigada a criar hierarquias informais entre os editores baseadas no “tempo de serviço” e na quantidade e qualidade das modificações. A organização fundada por Jimmy Wales criou filtros de edição que passaram a caçar o que o padrão de programação identifica como possível atentado à verdade. Em geral, erros e mentiras são logo revertidos, mas sempre passa alguma coisa — o que dá margem a problemas maiores.
Não raro, verbetes falsos ou com erros (deliberados ou não) alteram de alguma maneira a realidade. E a pior parte é que, mesmo com controle de edição e novas tecnologias de revisão, não é possível saber quantos boatos e pegadinhas ainda existem por aí. Entre cômicos e dramáticos, ainda que raramente trágicos, os exemplos são diversos.
Um deles é o verbete sobre o jurista Carlos Mirandópolis Bandeirense. Nascido no Rio de Janeiro, Bandeirense lutou contra a ditadura, inspirou a canção Samba de Orly, de Chico Buarque, e participou ativamente nas Diretas Já. Sua existência, contudo, é fruto da traquinagem de dois advogados de um escritório paulista que queriam pregar peça nos estágiários. Ficou registrado de 2010 a 2016 e se tornou fonte para um decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e para um trabalho de conclusão do curso de Arquivologia da UFRGS.
Imagem usada para ilustrar o fictício jurista Carlos Mirandópolis Bandeirense cuja morte teria ocorrido em 1984. Trata-se, na verdade, do político austríaco Michael Häup, do Partido Social Democrata da Áustria, ainda vivo. Crédito: Wikimedia Commons
O falso perfil é divertido: perseguido pela ditadura, Bandeirense foi convidado a ocupar a cadeira de Ruy Barbosa na Academia Brasileira de Letras, mas se recusou. Sua resposta foi um primor de estilo: "Como posso ser imortal na terra em que já morri há muito?". Descoberta a farsa no início deste ano, o verbete foi apagado da Wikipédia, mas sobrevive no Web Archive https://web.archive.org/web/20160223125032/https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Bandeirense_Mirand%C3%B3polis .
Outra farsa famosa pelo grau de detalhes foi um verbete em inglês sobre um conflito entre Portugal e Índia em 1640. Escrito em 2007, o “Bicholim conflict” tinha 4.500 palavras que detalhavam a batalha imaginária. Por sua qualidade, o artigo enganou os editores por cinco anos e recebeu a distinção de “bom”, que é tipo como uma medalha de prata entre os verbetes da Wikipédia. A fraude foi descoberta e apagada por um dos editores, não sem antes enganar muita gente, ser usada em trabalhos escolares e engordar o verbete sobre hoax famosos da enciclopédia.
A elaborada pegadinha da batalha que nunca existiu: fotos, imagens, fontes e citações para enganar o leitor. Crédito: Wikimedia Commons
Para o professor de jornalismo da Universidade de Nova York, Charles Seife, há uma explicação lógica nessas pegadinhas: a grande democratização da informação também significa erosão da autoridade. “A maior desvantagem é que a informação digital tem a habilidade de nos enganar ao mesmo tempo em que tem a pompa de autoridade, mesmo sendo completamente falsa”, diz o autor do livro *Virtual Unreality*, sem edição em português, que trata dos perigos da informação digital.
Outra consequência, segundo Seife, é que há uma erosão da capacidade de separar a informação boa da ruim. “A qualidade da Wikipédia é, em geral, bastante decente. Se todos a usassem como um primeiro passo não teria problema algum. Mas existem os preguiçosos que a tomam como uma fonte em si. Os livros e jornais estão tomados de fatos duvidosos vindos da Wikipédia.”
Por mais leitores críticos
E é bom se acostumar com a ideia de desconfiar sempre do que lê pela internet. Esses problemas vão continuar acontecendo e são reflexo de uma mudança na humanidade, que está migrando da cultura do modelo centralizado para o descentralizado, segundo Ariel Kogan, diretor-executivo da Open Knowledge Brasil, uma organização que advoga pelo conhecimento livre.
Para ele, o grande desafio da Wikipédia, que descentraliza a difusão de conhecimento, é discutir mecanismos para aprimorar o sistema e, sobretudo, como estimular especialistas a se tornarem editores. Kogan lembra como era feito principal modelo anterior, a enciclopédia Britannica: “Tinha um ritmo de atualização muito menor e menos conteúdo. É um modelo que precisa ter sempre um interlocutor”. Além disso, não era de graça.
“A pergunta correta nunca é se a Wikipedia é confiável, mas se a fonte é confiável. Quem colocou pode ter 12 anos ou ser um PhD, mas o que interessa é ver a qualidade da fonte”, diz Célio Costa Filho, que é administrador na Wikipédia desde 2005 e trabalha com plataformas wiki na educação.
De acordo com Filho, os mecanismos de segurança contra vandalismo digital se aperfeiçoaram. Foram criados, por exemplo, filtros de edição e robôs que impedem que usuários novos apaguem grandes blocos de texto, além de controlar edições que contenham palavrões.
“Antes era possível, como já aconteceu, que alguém mudasse todo o verbete ‘Luiz Inácio Lula da Silva’ para apenas 'Lula igual molusco'. Isso não acontece mais.”
O sistema também começou a reconhecer os usuários com base no tempo de cadastro e na qualidade da edição, o que reforça a credibilidade do editor. Para o educador, o dinamismo da Wikipedia é positivo porque permite reconstruir e corrigir erros com rapidez.
Fabro Steibel, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, também percebe a Wikipédia como parte do fenômeno da descentralização. “Havia uma cultura centralizada em uma enciclopédia física por uma instituição formada por ingleses brancos, definindo o rumo do conhecimento", diz. "Agora temos um modelo que é incomparavelmente mais diverso.”
Steibel, contudo, faz um alerta: “Quem tem um método de pesquisa, sabe que a informação precisa ser triangulada. Ou seja: é perigoso usar a Wikipédia como informação direta”. Para ele, está cada vez mais difícil saber se a informação é verdadeira ou não porque há muitas subfontes que parecem oficiais. “Um problema adicional é que o número de editores vêm caindo nos últimos anos. Há cerca de 30 mil hoje em dia, o que é pouco.”
Colocar alguma informação falsa na Wikipédia lembra um pouco os tempos de escola quando a gente riscava as mesas da classe e sobrava para a tia da limpeza arrumar. Tem sempre um gaiato fazendo sujeira em verbetes importantes ou irrelevantes. E sempre sobra para alguém limpar a sujeira alheia — desde que ela seja encontrada e, em alguns casos, provada.
Nos Estados Unidos, há vários casos nos quais a sujeira só foi limpa depois de afetar a realidade. Um deles partiu do verbete “infectado” do empresário Julius Freed, fundador de uma empresa de sucos chamada Orange Julius. Na biografia de Freed havia todo tipo informações bizarras sobre sua suposta paixão por pombos. Ele teria estudado a fundo o comportamento das aves, com objetivo de torná-las mais limpas. Daí sua grande invenção: um chuveiro portátil para pombos.
A pegadinha do chuveiro para pombos no artigo de Julius Freed rendeu até uma propaganda (séria) sobre a invenção. Crédito: YouTube
A informação ficou no ar por cinco anos: tempo suficiente para a empresa de publicidade space150 criar um filme com base nas informações da Wikipédia. No vídeo, de estilo semi-documental, lá está Freed observando os pombos, tomando banho com eles e criando o tal chuveiro. Na verdade, o hoax fora plantado por um funcionário da rádio pública de Miami chamado Joe Cassera. Descoberta a farsa, ele disse que tinha escolhido a vítima de maneira aleatória. Mas o objetivo era um só: mostrar que a enciclopédia não era confiável.
O outro caso parte dos Estados Unidos, mas tem um pé no Brasil. Depois de uma viagem com a família para Foz do Iguaçu em 2008, um garoto americano de 17 anos chamado Dylan Breves alterou o verbete em inglês sobre quatis, um tipo de guaxinim, escrevendo que eles também eram conhecidos como “Brazilian aardvark”. Seu motivo era apenas vencer uma discussão. O Aardvark é um tipo de mamífero que só existe na África e não pertence nem a mesma família de roedores do quati. De qualquer maneira, a informação se espalhou e foi mencionada por dois jornais ingleses (*The Telegraph* http://www.telegraph.co.uk/news/earth/wildlife/7841796/Scorpions-Brazilian-aardvarks-and-wallabies-all-found-living-wild-in-UK-study-finds.html e *Daily Mail http://www.dailymail.co.uk/news/article-2305602/Hunt-runaway-aardvark-Lady-McAlpine-calls-public-help-lost-ring-tailed-coati.html*), aparece na busca por fotos do site Shutterstock http://www.shutterstock.com/s/%22brazilian+aardvark%22/search.html, é citado em um livro sobre o legado do Brasil holandês e em mais uma porrada de blogs e sites menores. Já gigantesca, a mentira só começou a ser desfeita em 2014, quando publicações como a The New Yorker http://www.newyorker.com/tech/elements/how-a-raccoon-became-an-aardvark relataram o curioso fato de um adolescente americano ter inventado uma espécie nova pela internet.
Quatis protagonizaram a primeira especiação digital: viraram, sem querer, Brazilian Aardvark. Crédito: Wikimedia Commons
Seife chama a enciclopédia de “uma besta diferente” das que estávamos acostumados. A própria vantagem de ser atualizada a todo momento pode se tornar um problema. “Quando alguém cita em um artigo ou livro uma algo errado da Wikipédia, isso se torna uma referência externa que ajuda a legitimar o erro que já estava lá”, diz. É uma espécie de retroalimentação circular ou feedback loop.
O que traz de volta o caso da Marina Lima. As tentativas de seu assessor de imprensa de corrigir a informação eram sempre revertidas porque já haviam várias fontes indicando que ela era piauiense.
“Entrei em chats com editores, mandei emails para a Wikimídia, a Marina postou no Twitter e no Facebook que era carioca, mas eles não aceitavam como fonte. Ela chegou até a publicar sua certidão de nascimento nas redes sociais. Nada adiantou”, lembra Nomura.
Mesmo com declarações da cantora foi difícil de resolver a questão. Lucas Teles participou do debate dentro do site da Wikipédia. “Foi difícil de resolver porque havia uma fonte para referenciar a informação e as regras não permitem usar blogs, Twitter e Facebook como fonte, porque qualquer pessoa pode editar e apagar a informação”, diz Teles, que é editor há 9 anos. Ironicamente, é o mesmo motivo pelo qual a Wikipédia não é usada como fonte da própria Wikipédia.
A situação só foi solucionada depois de muito debate e muitos xingamentos de Marina Lima à enciclopédia via Twitter. O colunista Ancelmo Gois publicou uma nota, que passou a ser usada como referência. Ainda assim, como uma cicatriz da polêmica, foi criado um item que explica a confusão no verbete da cantora carioca.
Pesquisador de redes sociais na internet, o professor da pós-graduação da UFRGS Alex Primo diz que pensar a Wikipédia como o local na internet onde a verdade tem seu endereço é não ter entendimento nem do que é verdade nem das estratégias de disputa da rede.
“A enciclopédia presta um grande serviço à humanidade. É um projeto que visa transformar o conhecimento em algo que seja facilmente acessível e sem copyrights. Estamos melhor com ela do que sem”, afirma.
Nem todos pensam assim. De acordo sua assessoria de imprensa, Marina Lima considera o assunto o caso encerrado. Mas mandou um recado: ela não confia na Wikipédia.
wikimediabr-l@lists.wikimedia.org