Puxa, até o Everton??

Joaquim, como sempre uma explicação brilhante e precisa, parabéns.
João

2009/4/2 Joaquim Mariano da Costa Neto <joaquimmariano@yahoo.com.br>

Perdi a parte mais acalorada da discussão, mas mesmo assim resolvo palpitar com atraso.

As leis são um instrumento de manutenção do sistema. Numa boa democracia, as leis são um instrumento de manutenção do sistema elaborado e escolhido pelo povo. Num capitalismo feudal como o nosso, são um instrumento de manutenção do capital e das relações de suserania e vassalagem.

Por isso, uma das maneiras de contestar o sistema é infringir as leis. A gente normalmente não aprende isso na faculdade de direito, porque, assim como as próprias leis, o direito também é um instrumento de manutenção do sistema, com a vantagem (para os donos do sistema) de ser mais obscuro do que as leis, que geralmente estão escritas no papel para que qualquer pessoa leia.

Nos EUA, copiar música sem licença é crime. Em Cuba, restringir a cópia de música é crime. (são duas afirmações hipotéticas, já que não conheço bem a legislação dos EUA e de Cuba) Em qualquer caso, a lei desses países mantém o sistema e uma das maneiras de contestá-lo é justamente infringir essas mesmas leis.

Além disso, uma grande e recente sacada da sociedade judaico-cristã ocidental é equiparar a infração da lei ao pecado. Atualmente, para muita gente, infringir a lei é um pecado que manda o infrator diretamente para o inferno. O infrator fica estigmatizado pelo resto da vida. Infringir a lei, portanto, é um tabu, e assim acabamos hipocritamente esquecendo que todos nós infringimos a lei e eventualmente cometemos crimes. Sócrates, Jesus Cristo, Lênin, Gandhi, PCC, Henry Sobel e o Everton cometeram crimes. E a lei alcança cada um deles de acordo com a necessidade de manter o sistema.

Já trabalhei na Prefeitura de São Paulo e, pelo que testemunhei, arrisco dizer que 90% dos imóveis paulistanos infringem alguma lei. Alguém tem sono intranqüilo por saber que sua própria casa é irregular?

Enfim, é hipocrisia e falso moralismo reduzir as coisas a "é crime! é crime!". É crime, sim. E daí? Está previsto na lei, quem quiser contestar o sistema e infringir a lei o fará, quem quiser infringir a lei por comodismo o fará, os agentes da lei punirão os infratores na medida em que desejarem, a contestação possivelmente surtirá algum efeito, e assim caminha o mundo. Ou alguém pensa que o mundo muda pelas mãos das pessoas que cumprem a lei?

No caso específico do substitutivo do Azeredo, entre as várias aberrações, destaca-se a obrigação de "manter em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 3 (três) anos, com o objetivo de provimento de investigação pública formalizada, os dados de endereçamento eletrônico da origem, hora, data e a referência GMT da conexão efetuada por meio de rede de computadores" (sic). Além do uso incorreto do termo GMT (que há bastante tempo foi substituído pelo UTC), exigir o registro da cada acesso à Internet equivale a exigir o registro de cada passeio que faço pelas ruas de São Paulo. Ora, ao sair de casa, não sou obrigado a carregar comigo sequer meu RG e CPF. Saio de casa e acesso a rede mundial de vias públicas sem precisar levar qualquer documento e sem dar satisfação a ninguém. No meio do caminho, posso cometer vários crimes (nada virtuais), mas nem por isso sou obrigado a levar comigo os meus documentos ou me registrar em cada esquina com o policial de plantão.

Esse projeto de lei tem outras curiosidades.

As penas para "inserção ou difusão de código malicioso seguido de dano" (artigo 5º do substitutivo) equivalem aproximadamente às penas de lesão corporal grave (parágrafo 1º do artigo 129 do Código Penal). No mundo jurídico, isso se chama desproporcionalidade de penas (caso consideremos que lesão corporal grave seja um delito mais grave do que a "inserção ou difusão de código malicioso seguido de dano").

O artigo 7º do substitutivo estabelece que é crime "interromper ou perturbar serviço telegráfico, radiotelegráfico, telefônico, telemático, informático, de dispositivo de comunicação, de rede de computadores, de sistema informatizado ou de telecomunicação, assim como impedir ou dificultar-lhe o restabelecimento". Nesse caso, o responsável pelo traffic shaping na minha banda larga (perturbação de serviço de rede de computadores, de acordo com o texto proposto pelo senador) teria de ir para a cadeia.

No artigo 15 do substitutivo, muita gente não percebe, mas um "crime eletrônico" passa a ser punido com pena de morte, entre outras. Nesse caso, altera-se o Código Penal Militar e nele insere-se a previsão de "crime eletrônico". A legislação penal militar é o único conjunto de leis brasileiras em vigor que têm pena de morte (para crimes cometidos em tempo de guerra). Assim, observando as modificações introduzidas pelo projeto de lei no artigo 356 do Código Penal Militar, percebe-se que "crimes eletrônicos" podem ser punidos com penas que variam de 20 anos de reclusão à morte por fuzilamento.

Enfim, esses projetos de lei que foram juntados no substitutivo do Azeredo são uma piada. O pior é que são uma piada perigosa.

Abraços,

Joaquim





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