publicado em literatura por Luis de Freitas Branco
A morte do escritor mais conceituado da cidade revela que no ringue digital só contam os golpes baixos
Guilherme era o escritor mais conceituado da sua cidade. Para muitos, o principal favorito a renovar um lugar na Academia Brasileira de Letras, essa organização conceituada, antigo complô de Machado de Assis para invadir o Brasil. Apesar da corrida pender para seu lado, Guilherme cometeu um erro básico, morreu, impedindo uma tomada de posse. Foi um choque na cidade, sobretudo para Fred, o amigo e biógrafo oficial do escritor, que se estendeu num longo discurso de elogios, capa do principal diário. A morte de Guilherme coincidiu com o fim das últimas entrevistas que deu ao Fred, que preparava um novo lançamento biográfico. Aproveitando a morte do amigo, Fred decide porque não, uma biografia mais picante. Testando o terreno, começa pela Wikipédia, sendo que qualquer das formas, o texto da página já era da sua autoria. Atualiza o falecimento, com detalhes calorosos do funeral que comoveu a cidade. Passa para a seção de vida privada e acrescenta um segredo que o escritor confidenciou. Ele tinha uma amante. Manteve essa mulher toda a vida, com apartamento próprio em Jacarepaguá, enquanto o escritor estava casado, no centro da cidade.
Os herdeiros sabiam dessa amante e decidem retaliar, negar o caso, não fosse essa mulher decidir gozar parte dos espólios. Na Wikipédia apagam as novidades, mantendo apenas o estado atual do escritor, falecido. Na seção de vida privada deixam também o seu cunho, escrevendo que ele amava loucamente a mulher. O biógrafo, atento internauta, não tarda a assistir em direto à mudança na página, apagando o escárnio, que ele sabia que era estratégia dos herdeiros. Na sala carregada de livros autografados por Guilherme, condena os malditos dos herdeiros. Fascistas. Venezuelanos. Cubanos. Malditos. Fred não ia certamente deixar o pensamento da imprensa livre ser assim espezinhado, ia responder na mesma moeda, na provocação. Furioso, escreve que Guilherme além de ter uma amante durante toda a vida, ainda escondia uma mulata da favela, que tinha vergonha de admitir como namorada. O escritor tinha muitas qualidades, mas defeitos também, sendo o mais célebre um racismo fervoroso, impedindo que esta invenção do biógrafo fosse verdade.
“Mulata!”, desesperam todos os herdeiros em uníssono, acompanhando a retaliação do inimigo. “Mentir não.”
Apagam logo as calúnias, sublinhando o amor que ele tinha pela mulher, guardando mesmo a virgindade para o casamento, como manda a fé cristã, doutrina que era devoto.
“Fé cristã!”, ri irônico Fred. “É o desespero”, condena, conhecendo pessoalmente o ódio do escritor a todas as religiões do planeta.
Com os dedos aos saltos não perde tempo, teclando ao lado do nome Guilherme um epíteto, “O Ateu”. Segundo o novo texto ganhou a alcunha quando deu um tapa no bispo da cidade. Volta a copiar o texto da amante e da mulata da favela, acrescentando em grande destaque, uma relação meramente sexual com um padre da Candelária. Tudo acontecia nas cabinas de confissão, explica. Os herdeiros não estremecem, suam de excitação e voltam ao ataque, dando realce ao amor pela mulher, admitindo mesmo que ele na verdade era castrado desde criança. Ao lado do nome fazem o seu epíteto, “O Eunuco”. Antes mesmo de ler as novidades, Fred estava pronto para o contra-ataque, escrevendo como Guilherme era um conhecido pedófilo e a grande influência na escrita dele era Lewis Carrol. Especialmente as fotografias do inglês. Os herdeiros não entenderam a referência, mas apagam mesmo assim, acrescentando a sua versão, sucedendo uma imediata resposta do biógrafo e outra correção dos herdeiros. A brincadeira atingiu os seus limites e a Wikipédia decidiu na gerência interromper qualquer futura mudança na página, congelando as ações dos dois lados, estacionando no meio da retaliação mútua.
“Além de ser um dos nossos representantes mais famosos na literatura”, continua Gisele, terminando a sua apresentação na sala de aula. “Era também uma figura muito controversa”, acrescenta, se preparando para ler de seguida a parte gramaticalmente mais complicada da apresentação. “Era um pedófilo famoso, apesar de castrado desde criança. Quando ficou cego e amputado das mãos, também em criança, deixou de ter qualquer pensamento ou observação sexual. No entanto, é sabido que ele usava os cotos para violar as domésticas do prédio onde morava”. Gisele não falou das várias amantes e do amor condicional com a mulher, mas achou essa informação menos relevante, tendo em conta que era apenas uma apresentação de dez minutos.
“Menina Gisele! Saia já da sala! Ordinária!”, reage a professora de português, surpreendida com a provocação.
“Professora fiz toda a consulta na Wikipédia, não estou mentindo”, explica sem sair da sala, prendendo calmamente o cabelo no lenço da cabeça.
“Vamos ver”, sorri a professora, determinada a humilhar a aluna.
Liga o projetor, que faz de espelho para o visor do computador na sala de aula. Vai à página de Guilherme, na Wikipédia. Bem, acho que é escusado contar que a Gilete teve a melhor nota da turma. Afinal foi uma excelente apresentação, sem pontapés na gramática. O caixão de Guilherme, esse estava tudo chutado, de cima abaixo.